Duas visitas na Rua Henrique Dias

Uma chamada à noite. Rápido, à casa do bispo. Nova complicação, mas inédita. Não era um subversivo com a vida por um fio. Nem algo tão diferente disso.

Mas incrível… Agora estavam lá os dois. E um problema a resolver, com toda a pressa.

Não tinha carro, ele. Bôto, o Negão, marxista olindense, com seu iminente sorriso maroto. Mais de malandro, talvez… Marcou um ponto de encontro.

Depois viria ao planalto central por uns anos. Sempre à borda do excêntrico. Às vezes contador de mentira. Com seu escorregadio sorriso irônico. Depois namoraria uma tendência trotskista entre outras namoradas, é claro.

Ia então à Igreja das Fronteiras, que lá é que estava o imbróglio. Um plano gorado. Gesto suspenso no ar.

Um estranho zum-zum na cabeça, dele, que ali viera. Rua Henrique Dias, na casa ao lado da igreja. O padre continuava falando. O visitante tartamudeava, atravessando uma paisagem de sonho.

Ele já o fizera antes. Decerto que sim. Mas ali tudo desabava.

A picareta subiu no ar, por um breve tempo. E Leon caído, alagado em sangue. A escrivaninha num torvelinho vermelho.

Agora era dar sumiço no homem. No bom sentido: tirá-lo logo dali. Pro interior do estado: Caruaru, Ouricuri? Um negro pobre chegando, ninguém ia reparar muito. Ou mais longe: Rio de Janeiro? Salvador?

Em outra dobra do tempo, era eu que ali estava. Com a audácia dos tímidos, diria Clarice. Ele mesmo abriu o portão velho de madeira. Não devo ter olhado nos olhos.

O que quer um rapaz tão jovem nesse dia de carnaval?… Por que não está brincando o carnaval?

Um encontro com um homem notável. Não me lembro bem como saí sem ter transposto o portão no que pensava. Ainda não propenso à folia.

Era preciso levar o homem antes do amanhecer. Um homem rude. Que dizia que o outro era um santo. Então mirava, temeroso, pelas frestas do inferno?

Batera, por suposto, no mesmo portão que eu depois. O mesmo homem franzino foi que abriu. Mas pedia: uma comida, tinha?

Sim, estou indo tomar uma sopa agora… Você quer?…

Tentei atentar mas a coisa tendeu pra um outro lado. Como uma tentação de reescrever o que estava dito. De embaralhar o script. Naquele momento, talvez subentendido. Pelo outro.

De trair o contratado, deixando o mundo admirar-se. Ninguém saberá mas direi a mim diariamente o segredo.

Sentou-se à mesa para sorver um pouco de sopa. Gosto estranho de quê? Daquela expectativa. Sem saber o quê… mas falou afinal. Sentado a seu lado. Viera matá-lo.

NOTA:

A trama desse conto (meu único) vem da lembrança de uma visita que fiz em 1979 a Dom Helder Câmara… e, sobretudo, de uma história que teria se passado com ele anos antes, tal como relatada por meu amigo Antonio Carlos (Bôto), que nela também teria atuado (mas em plano secundário). Em dois ou três rápidos takes, a morte de L. Trotsky não pertence, decerto, aos espaços-tempos das “duas visitas”. O final do conto conduz diretamente (cronologicamente) a seu início.

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