O rei revém dos infernos

uma invenção de Francisco K em 16 quadros

ColagemFinalSitePort

Colagem por Winie Vasconcelos

Isso aprofunda enormente a compreensão daquele a quem a gente chama de Rei.

Caetano Veloso

1

Passou chispando. Bip, bip. Com seu novo carrão. Cadilac, calhambeque, carruagem. E no banco da frente, ao alcance da mão direita, uma garota de peitos firmes expõe as pernas. Papo firme. Há mais de mil garotas. Com a mesma sorte, consorte por rápidos dias do rei. O tempo passa chispando. Somos tão jovens. O vento bate nos cabelos, que a mão displicente ajeita.

2

O rei ri. O rei bem sucedido ri ao vento marinho e esvoaçam seus cabelos na Urca. Mas não de seus súditos mal sucedidos ri. Simplesmente ri porque a vida é bela, enquanto esplende o Rio. Um arrivista, não. Não um aventureiro que se lançou na temerária empresa de se fazer rei. Rei nato. Talentoso. Ri das ondas turvas da Urca. Simplesmente ri. O riso puro do menino que ainda é. Ri distraído.

3

Ele tem seu bróder. Belo como uma rocha. Com a alma tremendo, trêmula: atarantada. Difícil dizer o que um fez e o outro fez. Liga mais íntima que Lennon & McCartney. O que um começou a fazer na rua e o outro arrematou concentrado. Estou sentado à beira de um caminho que não tem mais fim. O que um traçou na pele e o outro executou no esquadro. Fama de mau mas ótimo sujeito.

4

Ri adoidado. O rei ri, endiabrado. Que tudo mais vá pro inferno! O rei sou eu, bicho. Emoções tântalas. Vocifera nos alto-falantes da Avenida São João. De que vale tudo isso? Perdido nas encruzilhadas: a grande cidade. Saudade da passarinhada lá de casa. O riso dissoluto, esboça um esgar. Ergo sum. Que rei sou eu?

5

A dita é dura, perdura. Pendura no pau de arara. Desdita de quem? A dita é árdua, divertidamente absurda. Manhã cinzenta. A ditadura fez e aconteceu e o país cresceu. O filme fez sensação no sequestro, foi a Cuba e Olney dançou. Paciência. O bolo cresceu e um dia vai ter que ser dividido. Vai ser bonito, só farelo pra ralé se refestelar.

6

O rei remira o mar. A água bate no casco de seu veleiro. O vento move o cabelo do rei que veleja, ao sol que doura a pele da menina estendida, quase sonhando. Ao balanço do casco. A eternidade não vai lançar um breve olhar sobre este instante, imperceptivelmente perfeito, quase? O sal retém-se e o óleo no bronze áureo daquela pele de agora, escorregadia.

7

Tem o Tim. Vozeirão. E seu feio hábito de subtrair. Não condeno mas também (o rei tem bom coração) não alivio. Pois se está pegando para si está tirando de alguém. Pessoa física ou jurídica. Fácil dizer que apenas mente um pouquinho. Ou racionalizar delirando. Ou vice-versa. Assim é fácil. Difícil é não estrilar se a sorte oscila. Sim. Difícil é a vida. E o ofício de síndico.

8

O rei bebe na boca da Bios, baba-lhe os peitos. Amada amante houve antes, agora é esta quem me dá o espanto. Me espanca... ou antes... sou eu quem bate em suas ancas, luzidias. Levemente. Carinhosamente, como merece a Mary. Rio-me de seu riso tonto, estremecido. Je vous salue. Mary Bios. Sem saber o que é direito o torto o avesso um corpo o outro o ente o entre...

9

Quando visita os meninos acidentados em um leito de hospital, algo se acende em seu coração. O rei é bom. E cedam nisso, ao menos: a concessão real de sua minha visita lhes faz bem. Pois ele é eu sou o rei. Eu sei o que aqueles olhinhos que brilham sentem e você, torpe poeta, não.

10

Iara eu ia, eu era, inocentemente. No seio doce do adverso. Sigo incendiando. Eu sou doido por Eurídice, quem me disse que ela era Iara, codinome Jussara, a musa múltipla, subversora. Um flash estoura, como nos flagrassem. Mas sua mão já se me escorrega e sigo e não ouso olhar para trás. E então para ali sempre foi uivando de dor, bem intencionados diabos puxando seus braços e pernas... e ali jaz.

11

Tem outro rei que é preto. Incomparável. Com a bola nos pés. Pensando em milissegundos. Talvez mais rei do que jamais serei. Mas o mundo, neste oco fervilhante do século XX, tem lugar pra nós dois e mais. O rei do reggae. Do baião. Do metacinema. Brasil campeão. Bi e tricampeão. Também no festival de San Remo. Fica na sua que eu tô na minha. Todo mundo sambando com a bola no pé. Yeah, yeah, yeah.

12

Sempre o menino simples. Interiorano. Vivo só pensando em ti. Mas Sampaio, o outro... onde é que anda? Por onde anda agora o Sampaio? Não Cachoeiro, não a árida Brasília, não Itapoã, mas Lapa. Malandro roto, vai acabar ficando morto. O rei e o rueiro. Ri entre os dentes, irredento. Seu pobre blues e ácido samba. Bebendo em pé, gabando-se de quase nada: Copacabana mon amour, eu sobrevivo. O nervo vívido, exposto, do que não é rei. Na cabine 103.

13

O rei vacila. Humanamente. Vago, erradio. Errare humanum est. À sombra da ditadura. Des jeunes filles en fleur. O rato roeu a roupa. O general na plateia retribuiu o sorriso. Que rei sou eu? É preciso fazer alguma coisa. Des braves enfants. O repto. Nos porões. Pétala a pétala. Pois é, estou indo. Bye!... Bye!...

14

Um dia a areia branca. London, London. Subindo a Porto Bello Road. E o rei descontraído segue no sentido do príncipe do cabelo encaracolado. Um dia a areia branca. Rosa fora a primeira a chorar. Porque o rei vinha até eles: o infante tropicalista, o estadista, a futura filósofa. E ali estava regiamente, descontraidamente, para ser visto por eles. Eis que entoa sinuosa canção.

15

O rei biografado. Sente incômodo. Admira-se da alheia bisbilhotice. Decididamente não lhe agrada. Com quantos erres se grafa o rei, responde rápido. E erros nesse relato? Inda mais quando verte o vero. O espelho trincado de um fã. Então o rei que se ferre? O rei processa e manda recolher. O rei é o rei e ponto.

16

Arfando o fôlego que lhe falta. Ainda entrecortado. Pisar (de novo) aquela areia. A viva memória dos choques no pênis e no ânus. Circuito. Os membros entorpecidos. Do último pau de arara. Uma porta enfim se abrira. Ele era o rei. Precisava sobreviver. Por seu povo. O futuro resplandecente desse povo. Nem que fosse preciso esquecer tudo que sabia. Reaprender do zero. Ao pisar a areia, nela deixar a marca do pé. Sabia que estava voltando, pra sua gente. Longe, um selvagem levanta o braço. Decerto deliro. Estende os olhos ao aberto. Um pesadelo talvez. Enquanto os raios aurorais vêm dóceis bater em um formoso seio do mar Guanabara

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17 thoughts on “Rei Slider

  1. “Parece que você já disse isso”, não computador, é a primeira vez”. Um papo firme se forma a caminha do Choupal. Bibite.

  2. Poetamigo, magnífica a sua invenção panóptica, mais do que um singularíssimo enfeixamento de intertextos pop e referências eruditas (Roberto Carlos, Caetano Veloso, Renato Russo, Sérgio Sampaio, Gonzagão, Descartes, Nietzsche, Orpheu-Eurídice, Jussara-tupi-palmeira), mas uma re(a)presentação de ‘a dita é dura’ (no sentido mesmo da mimese), (re)amalgamando tanto o espanto ante as bestas feras do fascismo e do capitalismo quanto a sensualidade, a irreverência, o amor dispostos – e pensadamente embaralhados – no seu “decerto delírio”. Lerei-relerei-lerei mais e mais.

  3. Sim, querido Kaq, o tempo passa chispando e o eterno retorno do mesmo chicoteia a face dos “nossos” tempos.
    Muito contente em ler suas postagens. Gostei do diálogo semiótico dos textos.

  4. Muito criativa a ideia… Achei genial!
    O tempo sempre a nos mostrar a impermanência de tudo…
    Mas o belo e significativo permanece.
    Um grande abraço, meu irmão.

  5. Muito bom. Luciana já disse (mais que) tudo. Os vários reis – o cantor de sucesso e o preso torturado, entre outros.
    Interessante que o jogo com a linguagem não nega nem sonega a experiência, antes a revela e ressalta. Prismaticamente. Bacanérrimo.
    Paro por aqui, porque corremos o risco de virar vis imitadores do Kaq! Abraço grande.

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